terça-feira, 8 de junho de 2010

O que sobra da infância

Nasci de três filhos o mais novo. O mais acariciado na cabeça. O menos desejado. Daquele que já não há o muito o que dizer ou experimentar, que o sonho já foi vivido e o segredo já foi dito. Não me senti uma criança literalmente em paixão com os pais. Sentia que a mãe passava muito a mão na minha cabeça, mais que nos outros, mas que isso era só pra fazer dos calos da mão dela mais macios. Eu comia cereal na cozinha azul enquanto ela fazia isso.
A mãe gostava muito de alisar a minha cabeça. Não a dos outros. A minha devia de ser também por causa do cabelo, que era comprido na altura das orelhas e negro, escorrido e fino, que puxei do pai. Os outros não tinham cabelo assim. Mas eu não via graça nenhuma nisso. Eu achava muito chato não sermos todos iguais e ter que ser mais alisado na cabeça que eles. Eu acho que eles nunca entenderam. Que ser mais alisado na cabeça não era ser mais amor. Era só meu cabelo e os calos da mãe. Mas meu cabelo liso fez dos irmãos uma parte, um tempo, sentirem vontade de ser diferente do que são, e eu, diferente do que sou. E aí eu já não era originalmente eu. Naturalmente feliz ou satisfeito em ser eu. Essa é a primeira vez em que me lembro de pedir para cortar os cabelos e pedir aos prantos, porque meus cabelos não faziam dos meus irmãos iguais a mim, e não faziam de mim, igual à antes. Eu queria retornar a antes daquilo. Não haveria de haver volta, certo? Lá estava a descoberta: logo acima de minha cabeça, meus lisos cabelos pretos. Logo acima de mim, mim depois de antes de mim.
Ânsia como de nunca. Sentado naquela cadeira de salão que parecia me engolir por inteiro. Sentado dentro da minha mente e esperando que meu cabelo fosse embora junto com minha nova pessoa.
- Pede pra ele cortar bem curtindo mãe, parecido com quando eu nasci. Pede pra ele cortar bem curtindo mãe, bem parecido com bem antes de quando eu nasci.

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