quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Sentada no chão da varanda, fumando meu cigarro, eu podia ver meu irmão Rodrigo obrigando seu filho João a se alimentar. João dizia que a comida estava com um gosto ruim, e que não ia comer. Meu irmão, de saco cheio de toda aquela situação fora de controle disse a ele que caso ele não comesse aquele prato de comida, passaria toda a tarde com fome. Rodrigo segurava no braço de João com força, e obrigava-o a sentar no sofá. Cada vez mais João relutava, cada vez mais ele sentia-se forte naquele posicionamento de negação, cada vez mais seu choro funcionava. Alguns minutos depois, depois de duas trocas de prato, e comida desperdiçada, ele estava comendo.
No sofá frente ao que João sentava, minha mãe, Maria Fernanda da silva Henriques fazia sempre a mesma expressão de insatisfação com a vida. De insatisfação com existência que sinceramente é a expressão que eu mais me recordo de seu rosto. Minutos antes minha sobrinha, Bruna, entrava na sala calçando um tênis Nike de molas amortecedoras que já fora um sonho de consumo meu, por volta de meus 16 anos de idade. Os 599,00 reais que ele custava na época permanecem. Olhar para os pés calçados me fez sentir abandono, e mais, me fez perceber o que sentiram meus irmãos mais velhos quando eu aqui cheguei, em 1989, ostentando todo privilégio de uma rainha. Porque eu não pude ter aqueles pares de tênis Nike? Não sei se a culpa é da Nike ou de dona Maria Fernanda, fato é que me senti descalça.
Tudo pareceu se traduzir quando eu percebi que não sentia raiva de não estar calçada, muito menos saudades de quando tinha de comer o que colocavam em meu prato. A verdade é que no fundo, nascemos órfãos, somos adotados, e em algum dado momento, estamos livres. Livres e fortes; fracos para alguns, em alguns momentos, até frente ao espelho, pois a força se constrói também nos momentos de covardia. Encarar meu reflexo no vidro da varanda e ver que posso, de fora, viver o que está lá dentro, é prova da minha evolução.
Alguns, continuarão famintos, outros, descalços, só enquanto relutarem por adentrar tudo que deve ser visto de fora, com o olhar de dentro.